Em 2006 o então presidente Lula lançou a pedra fundamental do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), localizado em Itaboraí, leste fluminense, afirmando que só as obras gerariam 212 mil empregos e que a Petrobrás era “ o filho que todo mundo gostaria de ter, uma espécie de Ronaldinho das indústrias brasileiras[i].” Dois anos depois, Lula voltou ao local para inaugurar o início das obras: “O que está acontecendo aqui ajuda a mudar a política industrial do Brasil e eu não tenho conhecimento, em toda a América Latina, de um investimento da magnitude deste que estamos lançando. Eu vou repetir o número: 8,4 bilhões de dólares. É o maior investimento público-privado já feito neste País.” As falas do ex-presidente mostram que o Comperj representava desenvolvimento para região e para o Brasil, tudo isso assegurado pela confiança na Petrobras. Passados quase dez anos seria bem difícil que até mesmo o otimista Luiz Inácio Lula da Silva fizesse discurso parecido.
A mudança do cenário desde que Lula fez as visitas a região é uma das constatações do Toxic Tour na área do Comperj, uma visita guiada que fez parte das atividades do V Seminário de Justiça Ambiental, Igualdade Racial e Educação, promovido pelo Grupo de pesquisa de Relações Raciais, Desigualdades Sociais e Educação do Programa de Pós-graduação em Humanidades, Culturas e Artes da Unigranrio; Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da UERJ; e Fórum dos Atingidos pelas Industrias de Petróleo e Petroquímica das Cercanias da Baia de Guanabara (FAPP-BG).
O Comperj
Com objetivo de expandir a capacidade de refino da Petrobras para atender a demanda de derivados, como óleo diesel, nafta petroquímica, querosene de aviação, coque e GLP (gás de cozinha), o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro ocupa uma área de 45 km². Quando Lula esteve por lá, a previsão para o início das operações era 2012, hoje as obras encontram-se paralisadas, mas o portal institucional informa que a primeira refinaria será acionada em agosto de 2016, com capacidade de refino de 165 mil barris de petróleo por dia. Apesar da informação oficial, tudo indica que o prazo não será cumprido. Empresas responsáveis pelas obras como Andrade Gutierrez, Mendes Junior, Odebrecht, Queiroz Galvão e UTC estão sendo investigadas pela Operação Lava Jato, que apura fraudes e pagamento de propina em contratos da estatal com empreiteiras e construtoras. A Petrobras passa por uma crise intensa, com investigação sobre corrupção, mudanças nos comandos, processos na Justiça, volatilidade das ações e queda do preço do petróleo no mercado internacional.
Em agosto deste ano os prefeitos de Itaboraí, Nova Friburgo e Rio Bonito se reuniram com o presidente da estatal pedindo a retomada das obras do Comperj. Segundo Helil Cardozo, prefeito de Itaboraí, a conclusão da obra asseguraria uma arrecadação de R$ 296 milhões de ICMS para o estado. De acordo com Cardozo, a obra já teve 32 mil empregados e hoje tem apenas de 4,5 mil a 6 mil trabalhadores. Essa queda no número de empregos se reflete na economia dos 15 municípios da região, segundo informações publicadas pelo G1.
Itaboraí e o sonho do petróleo
Ao chegar em Itaboraí constata-se rapidamente que houve uma expansão de empreendimentos imobiliários e que a maior parte deles está vazia. Segundo Glauco Oliveira, membro do Fórum Popular do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro em Itaboraí, há mais de 20 prédios abandonados na cidade e tudo foi construído levando em consideração a demanda provocada pelo Comperj. Para ele gerou-se uma enorme expectativa de geração de emprego que hoje está frustrada. Uma das grandes promessas foi o saneamento básico para a região que seria financiado com recursos da Petrobras e com o aumento da arrecadação dos impostos.
Até o final do ano Itaboraí deve perder quase 13.500 vagas. O número de demissões está superando as contratações, de acordo com um levantamento da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). A maior parte dessas demissões está ligada direta ou indiretamente ao Comperj. Para Oliveira, os trabalhadores do Comperj viviam uma espécie de invisibilidade porque como muitos eram terceirizados, a Petrobrás não se responsabiliza pela garantia de seus direitos.
Vila portuense e a negação do direito à moradia
Os prédios fantasmas de Itaboraí são problemas pequenos próximos aos que enfrentam os moradores da Vila Portuense. O bairro faz parte do distrito de Porto das Caixas e abriga 160 famílias, vizinhas do Comperj. Em junho de 2011, Dona Ebanildes, 73 anos, e outros moradores foram surpreendidos com uma ordem de despejo na qual foram informados que deveriam deixar suas casas em 30 dias. A Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos) reivindicou os terrenos para instalar tubulações de água que aumentariam a rede da região, mas que para os moradores buscavam, na realidade, viabilizar o abastecimento do Comperj. A comunidade se mobilizou e conseguiu que fosse incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Federal da Vila Portuense a construção de novas habitações. As obras começaram em 2011, foram interrompidas em 2012, reiniciadas em 2013 e paralisadas novamente. Segundo a Secretaria Municipal de Habitação de Itaboraí, há 120 dias o Governo Federal não repassa os recursos para o PAC, o que provocou a paralisação das obras há 90 dias, sem previsão de retomada.
A prefeitura também afirma que essas obras não estão relacionadas com as condicionantes do Comperj, nome dado para as compensações sociais e ambientais de um empreendimento desse porte, mas a interrupção da construção do complexo impacta na queda de 50% da arrecadação da Prefeitura, que também tem dificuldades em repassar sua parte da contrapartida do PAC, que é de R$ 3 milhões. O orçamento total do PAC Vila Portuense é de R$ 11,5 milhões.
Ramon Vieira, uma das lideranças da região, explica que havia a promessa de que os bairros ao redor do Comperj seriam modelo, mas o empreendimento até agora não trouxe nada de bom para a população. Segundo ele, além dos problemas de habitação, existem muitos outros como o monopólio do transporte que faz com que, por exemplo, a escola adapte o horário das aulas aos dos ônibus. Também faltam médicos para atender a localidade e a violência tem aumentado.
A prefeitura de Itaboraí afirma que as obras das casas estão 47% prontas e que a partir da retomada dos trabalhos serão concluídas em um ano. São 10 blocos de apartamentos, além da previsão de construção de creche, centro comunitário, quadra poliesportiva coberta e vestiários, pavimentação das ruas no entorno, instalação de redes de água e esgoto, sistema de captação de águas pluviais e iluminação. Mas hoje tudo isso não passa de promessas e as casas do PAC são apenas materiais de construção e habitações inacabadas que junto ao Comperj compõe a vista dos moradores, descritos por Vieira como símbolos de luta popular.
A vida resiste na APA de Guapimirim
As questões de melhorias na infraestrutura e frustrações de crescimento econômico da região são apenas uma face da complexa rede de fatores que envolvem a construção do Comperj. Um dos elementos mais importante é a questão ambiental. Para que a licença de instalação e de operação pudesse ser concedida ao empreendimento uma série de condicionantes foram criadas com o objetivo de compensar o meio ambiente pelos danos que serão causados pelas refinarias. O Entreposto de Pesca de Itambi é um dos locais onde se aplica uma dessas condicionantes.
O pesquisador Felipe Monteiro faz parte de um projeto de pesquisa que estuda a topografia do manguezal de Guapimirim. Ele explica que o monitoramento da área é essencial, porque não há na região uma reserva de água. O rio Macacu abastece a região a partir de um desvio feito pela Cedae para captar essa água. Como o Comperj fica à montante (mais próximo da nascente) da área de captação, caso aconteça qualquer acidente dentro do complexo, São Gonçalo, Niterói e parte de Maricá terão o abastecimento de água bastante afetados. Assim, o monitoramento contínuo é necessário para a segurança de toda essa população. O projeto de Monteiro é administrado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com financiamento do Comperj. Com um custo de cerca de R$ 400.000 anuais, o projeto está ameaçado de ser suspenso no ano que vem com a justificativa da crise. “O nosso projeto é muito menor que o impacto que um acidente pode provocar na região”, lamentou Felipe.
Na visita ao entreposto fica clara a presença da vida nos manguezais que demonstram a importância ambiental da região escolhida para a implementação do Comperj. Segundo o relatório “Indústria do Petróleo e Conflitos Ambientais na Baía de Guananara: o caso do Comperj,” da Plataforma DHESCA, este tipo de ecossistema é um berçário das espécies marinhas, relevante para a pesca artesanal e para a qualidade ambiental, além de ser um importante sistema natural de proteção costeira. O Comperj está sendo instalado e impacta um conjunto de 31 unidades de conservação: o Mosaico da Mata Atlântica Central Fluminense, composto por duas Unidades Federais de Uso Sustentável, três Unidades Federais de Proteção Integral, duas Unidades Estaduais de Uso Sustentável, duas Unidades Estaduais de Proteção Integral, dez Unidades Municipais de Proteção Integral, sete Unidades Municipais de Uso Sustentável e cinco Reservas Particulares, informa o relatório.
Que desenvolvimento é este?
As problemáticas encontradas nas áreas nobres de Itaboraí, Vila Portuense e no Entreposto de Pesca de Itambi tendem a ser interpretadas pela maior parte da sociedade como desafios relacionados à expansão da indústria do petróleo e petroquímica. O tsunami de corrupção e a conjuntura internacional de preço baixo do barril parecem ser as explicações para que Itaboraí não alcance o desenvolvimento que merece e para que o Comperj não seja uma alavanca para a economia do País. Mas essa leitura é contestada por atores da sociedade civil como aqueles que se reúnem no Fórum dos Atingidos pelas Indústrias de Petróleo e Petroquímica das Cercanias da Baia de Guanabara (FAPP-BG).
Na visão do Fórum e de outras organizações de defesa de direitos essas questões constatadas no Toxic Tour são reflexos de um modelo de desenvolvimento que tem como prioridade a exploração predatória de recursos naturais para garantir o PIB almejado e uma balança comercial equilibrada. Mas o resultado na prática revela um reforço das desigualdades sociais, econômicas e ambientais. “São grandes projetos que prometem reduzir a pobreza, mas acabam a multiplicando. Então estamos questionando este modelo dependente de petróleo,” afirmou Sebastião Raulino, membro do FAPP, pesquisador e professor na Faculdade de Duque de Caxias e na rede municipal de Caxias e Rio Janeiro.
Raulino analisa que é preciso relacionar a construção do Comperj com um aumento da pressão econômica sobre os ecossistemas da Baía de Guanabara, ameaçando populações, seus modos de vida e condições de vida. Para ele, a escolha da localização do Comperj é baseada em critérios econômicos. Instalar o Comperj perto da Refinaria Duque de Caxias (Reduc), cada um em um lado da Baía, diminuiria custos, facilitaria a vida da indústria do petróleo e isso significaria a implantação de muitos oleodutos e gasodutos passando pelo fundo e pelas cercanias da Baía, além do crescimento do número de embarcações.
Segundo o FAPP, a desigualdade e a injustiça ambiental vivida pelas populações diretamente afetadas pela indústria do petróleo e petroquímica instalada nas cercanias da Baia de Guanabara têm origem em processos complexos de produção de desigualdades que envolvem relações entre trabalhadores, empresas, sociedade e governos. Em todo o Brasil são os trabalhadores e as populações discriminadas pela sua origem, cor ou etnia que estão mais vulneráveis aos riscos ambientais e que tem acesso restrito ao saneamento básico e a água potável. Além disso, são negadas a essas camadas da população possibilidades de participar verdadeiramente das decisões sobre o uso dos territórios que vivem.
Duque de Caixas, município que abriga a Reduc, tem o segundo maior PIB do estado do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo possui um dos piores índices em termos de moradia, saneamento, segurança, além daqueles ligados a poluição causada pela refinaria. Assim, a partir do exemplo da Reduc, emblemático conflito ambiental, é possível prever os riscos do Comperj além dos problemas já existentes caso o Estado não tome iniciativas para modificar o processo.
Nesse sentido para o professor Henri Acselrad (IPPUR/UFRJ) a questão ambiental diz respeito "à disputa entre diferentes formas de apropriação e uso dos recursos naturais – terras, águas, atmosfera e sistemas vivos -, por um lado, fonte de sobrevivência para os povos e, por outro, fonte de acumulação de lucros para grandes corporações”.
Para grupos como FAPP, os caminhos de enfrentamento para essa conjuntura são a construção e o fortalecimento de processos decisórios mais participativos, envolvendo o controle social das atividades industriais e a promoção de justiça ambiental.
[i] Segundo matéria do Portal Terra http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI1042056-EI306,00-No+R…